Surge uma nova cultura de aprendizagem em que tudo está em construção e revisão permanente
Imagine um lugar onde o aprendizado acontece de acordo com a necessidade de cada profissional, a partir de conversas com pessoas em quem ele confia. Imagine que a aprendizagem é contínua, distribuída por toda a organização e se incorpora de forma natural ao fluxo de trabalho. Em cada reunião e em cada café há pessoas aprendendo.
Bem vindo ao mundo da aprendizagem em rede. Você já faz parte dele e já teve esse tipo de experiência. Já aprendeu algo no corredor, com um amigo no momento em que mais precisava. Já sentiu na pele o modelo 70-20-10 (de Eichinger, Lombardo e McCall): 70% do aprendizado vem de experiências da vida real, 20% vem de outras pessoas, por meio de feedback, mentoring ou coaching e 10% do aprendizado vem do treinamento formal.
É nas relações que colocamos o conhecimento em movimento: dialogamos, contamos histórias e conectamos saberes. É em rede que encontramos nossos pares e aliados, experimentamos, criamos novos conhecimentos e testamos possibilidades inovadoras.
Mas por que a aprendizagem em rede tem sido tão discutida? E qual será o papel dos profissionais de treinamento e desenvolvimento nesse contexto?
Trabalho, aprendizagem… Tudo em rede
Sempre vivemos em rede: Maria é amiga de José, que é primo de Marcelo, que ama Maria. As redes sociais são nossa forma de estar no mundo. No encontro com o outro percebemos que somos únicos. Ao compartilhar, validamos ou reformulamos nossas ideias. Já na década de 1930, Jacob Moreno, criador do psicodrama, desenhava os primeiros grafos de rede: imagens que retratam pessoas (nodos) e as relações entre elas (conexões). Ele é considerado o pai da análise de redes sociais e já apontava: a criatividade, espontaneidade e necessidade de compartilhar são propulsoras da formação de comunidades dinâmicas. Mas essas redes mudaram muito com o advento das mídias digitais.
- Nossa noção de espaço mudou. Pessoas e conhecimentos antes distantes se tornaram acessíveis. Para provar isso, Duncan Watts e seus colegas da Universidade de Columbia fizeram em 2003 um experimento que confirmou: qualquer pessoa no mundo está a apenas seis contatos de distância de você. São os seis graus de separação.
- Mudou a nossa forma de conviver. Se você está no Facebook, faz parte do terceiro maior país do mundo, com 1 bilhão de pessoas, atrás apenas da China e da Índia. Você conseguiria conviver de fato com todos os “amigos” que tem online?
- A facilidade de acesso é muito maior, não só pela onipresença do Google, mas porque quase todo conhecimento pode ser tagueado (ou etiquetado) e as tags formam o que se chama folksonomia: uma categorização de conhecimentos que as próprias pessoas criam para indexar o que lhes interessa. Os trend topics (ou tópicos tendência) do Twitter são tags. Cada comunidade de prática na web também tem suas tags. Em aprendizagem, há a #edutech (tecnologias de educação) e a #MOOC (Massive Open Online Course), por exemplo. Jogando isso na rede achamos conhecimentos atualizados e pessoas em tempo real.
- Aumentou também o potencial de feedback. Pense: uma postagem pode ser comentada diversas vezes ao mesmo tempo, o que é impossível numa conversa presencial. Durante um tweetchat, é possível compartilhar um conhecimento com pessoas de todo o mundo rapidamente e obter contribuições.
Além disso, hoje todos podem ser criadores potenciais de conhecimento. A reputação, que antes era construída com o acúmulo de conhecimentos formais ao longo de anos e anos, passa a ser construída online, numa mistura entre os critérios antigos (o conhecimento consistente continua sendo um diferencial) e os critérios novos, em que cada um vale pelo que compartilha.
Tudo isso vai imprimindo velocidade às conexões e permite outras formas de articulação e colaboração em rede.
E agora, como aprendemos?
Está emergindo uma nova cultura de aprendizagem. Os nativos digitais, profissionais que cresceram usando a internet, querem acesso amplo ao conhecimento, querem ser autores, buscam propósito claro e dinamismo. Trata-se de conectar, se apropriar, experimentar, errar, compartilhar e aprimorar rápido. Faz todo o sentido em um mundo em crise, onde novas profissões e empreendimentos estão sendo inventados. Vivemos em beta: tudo está em construção e revisão permanente, tudo é possível.
No meio de tudo isso, alguns princípios simples podem ser valiosos para os profissionais de aprendizagem:
- O conhecimento está nas pessoas;
- Elas são as detentoras de seus problemas de trabalho, portanto,
- Sabem o que precisam aprender;
- Elas gostam de aprender umas com as outras, contando histórias;
- Grupos fortalecidos por conversas aprendem e produzem melhor.
Então qual é a dificuldade? Basta criar contexto para que tudo isso aconteça.
Mas, não é tão simples. Esse tipo de aprendizagem é imprevisível e rizomático (multiplica-se em várias direções, como a grama que cresce no seu jardim). Como vamos medir isso? Como vamos desenvolver competências? E, acima de tudo, como vamos confiar que esse negócio de aprendizagem em rede vai dar certo?
O paradoxo de T&D e a tecnologia educacional
Temos em mãos um paradoxo. As organizações querem colaborar e aprender em rede, porque sabem que dessa forma se tornam mais adaptáveis e inovadoras. Só que essas mesmas organizações ainda analisam e desenvolvem pessoas a partir do modelo competências, que é pouco maleável.
Datado da década de 60 e criado por David McClelland, esse modelo facilitou o alinhamento de práticas de seleção, T&D, gestão de performance e carreira e sucessão com as necessidades estratégicas da organização. Ele se baseia numa análise top-down: a partir da estratégia são definidas as competências para cada área ou cargo e as pessoas são avaliadas em relação isso. São definidas as lacunas de competências e um dos “remédios” para isso é o treinamento. É um modelo com foco no indivíduo e em desenvolver o que falta.
Enquanto isso, na rede, as pessoas estão resolvendo problemas e inovando. As suas necessidades de aprendizagem são pautadas pelo que acontece na prática da estratégia e pelas interações rápidas no ambiente de negócios. É um lugar onde buscamos soluções coletivas baseadas na abundância dos talentos presentes seja no time, seja nas redes externas que conseguimos acessar. São dois modos muito diferentes de pensar a aprendizagem.
Mas o paradoxo é pai da inovação: dele podem emergir novas sínteses e práticas. Como já conhecemos muito sobre o modelo atual, vamos refletir mais sobre o que vem por aí.
Como o profissional de aprendizagem organizacional pode ser um agente da aprendizagem em rede?
1. Precisamos entender os momentos de carreira e os diferentes perfis de aprendizagem dos funcionários. A aprendizagem formal é mais importante no início da carreira e a aprendizagem em rede vai ganhando importância cada vez maior. Jay Cross oferece uma ótima metáfora: os iniciantes andam de transporte público, são conduzidos. Os aprendizes plenos se autoconduzem, andam de carro e os seniores andam de bicicleta, ganhando mobilidade e leveza para contribuir, dar coaching e mentoria.
Então, como criar contextos flexíveis para que todos esses “veículos” trafeguem? Será que não estamos forçando todos pelas mesmas “ruas”, pelos mesmos processos de aprendizagem? Podemos causar com isso um grande congestionamento e deixar de ser relevantes.
2. Criar e facilitar contextos de diálogo
Cabe aos profissionais de T&D dialogar com a rede para entender o que ela precisa. É momento de absorver, buscar, compartilhar ou construir conhecimentos? Que métodos são mais úteis? É sala de aula mesmo? Ou vamos fazer uma conversa aberta, tipo open space? É hora de buscar um especialista fora da organização? Ou precisamos ter contato com uma experiência que está acontecendo aqui mesmo, dentro de casa?
3. Catalisar conexões entre as pessoas
Podemos dar visibilidade para os talentos e experiências das pessoas que fazem parte da rede, estimulando que circulem mais, seja para ensinar o que sabem, seja para aprender ou buscar ajuda. Esse conhecimento dos talentos é precioso, dinâmico e altamente contextual. Não consegue ser capturado pelos modelos de competências. É preciso envolver as pessoas para definir o que é mais raro, mais relevante e o que precisa ser compartilhado. Os resultados são surpreendentes. Cada um pode localizar aqueles com quem tem mais a aprender e ir atrás. Mistura um pouco gestão do conhecimento com aprendizagem? Sim. Estamos na era das misturas e da reconfiguração de limites.
4. Capacitar as pessoas para fazerem sua gestão pessoal do conhecimento
A sigla #PKM (Personal Knowledge Management) agrega vários recursos e ferramentas que ajudam a buscar, dar sentido e compartilhar conhecimentos. É o que Harold Jarché chama de modelo Seek, Sense e Share. Enfatizar o PKM é incentivar cada profissional a cuidar das suas conexões, buscar foco e aumentar a qualidade do que é compartilhado na rede. Tanto Jarché quanto Pierre Levy, pai do termo Inteligência Coletiva, concordam: se houver um PKM eficiente, as pessoas vão aprender naturalmente por meio de conversas criativas.
5. Incorporar o processo de aprendizagem ao fluxo de trabalho é essencial. Levante a mão quem não teve no último ano dificuldade de encher uma turma de treinamento ou não teve grandes índices de no show. O desafio não é só encontrar o conteúdo relevante, mas abrir janelas de tempo para a aprendizagem. Está cada vez mais difícil que as pessoas fiquem 2 ou 3 dias desconectadas de seus projetos de trabalho. A aprendizagem em rede é um dos caminhos para encararmos essa questão.
Todo esse movimento faz parte de uma grande transformação. As organizações estão revendo suas estruturas e estão surgindo novas formas de trabalho, para além das grandes corporações. Os profissionais de T&D podem ter um papel fundamental desde que encarem esse processo. Eles podem conectar os requisitos de aprendizagem que vêm da estratégia da organização, top-down, com as necessidades cotidianas que emergem da rede, bottom-up: um diálogo delicado, mas criativo. Vai mudar o modelo de gestão de treinamento? Vai exigir muita diplomacia, muita leitura de grupo e visão sistêmica? Sim. Mas talvez tenha chegado o tempo nos perguntarmos simplesmente: Qual a melhor ajuda que podemos dar para que as pessoas aprendam juntas, a todo instante e de forma prática?
Pode ser um trabalho muito interessante.
Luciana Annunziata é designer de aprendizagem social (teve que inventar uma profissão para si mesma), diretora da Dobra Inovação e Aprendizagem, formada em Economia, Artes, Facilitação de Grupos e Criatividade Aplicada. Acredita que o mundo é um lugar a ser transformado e que os profissionais de T&D são, acima de tudo, educadores.
Mais recursos sobre esses temas no blog http://ideiasprainovar.wordpress.com . No site da Dobra http://dobra.com.br e uma apresentação que acompanha neste artigo no slideshare da Dobra http://www.slideshare.net/DobraInova.