Razão-emoção no coaching
Desde tempos imemoriais o homem tenta dar conta do binômio razão-emoção, seja valorizando um em detrimento ao outro, seja tentando unificá-los indistintamente, caindo muitas vezes na armadilha reducionista da hipersimplificação. Penso que não se trata de um conflito, mas de uma interação complexa e ampla, que abrange diversas compreensões de razão e emoção, afeto e pensamento. Nesse texto compartilho minha visão sobre o tecido vivo que vejo possível quando pensamos razão-emoção nas práticas de coaching.
Quando se passa por uma formação que, não se limitando a oferecer condições para ampliar a visão de mundo e a capacidade de atuação de outro ser humano, pretende também gerar aprendizagem, torna-se quase inevitável a busca por uma coerência com suas práticas, vivenciando-as e acercando-se de seus resultados. Para mim, o contato com a filosofia, seus conceitos e sua inspiração, é imprescindível para criar um território fértil de elaboração e experiências.
Escolhi abordar o tema razão-emoção usando as lentes da filosofia, consciente de que algumas vezes ela é associada por muitos a algo abstrato, da ordem do conhecimento puramente teórico e sem grandes aplicações na realidade, o que se opõe à visão geral do coaching.
Quero trazer um pequeno recorte do pensamento do filósofo holandês Baruch Spinoza na tentativa de empreender o desafio da articulação razão-emoção na prática profissional do coach. Pensador que me traz muitos tormentos, ele é visto por muitos outros pensadores como uma espécie de “padrinho” com grande influência no pensamento contemporâneo. O grande filósofo Henri Bergson disse que “todo pensador deve ter duas filosofias, a sua própria e a de Spinoza”.
O pensamento de Spinoza aponta uma saída para a vida, abrindo por entre as pedras um caminho que pode nos guiar em parte de nosso fazer profissional. A partir de nosso encontro com sua obra temos a possibilidade de encontrar uma tonalidade afetiva que nos diz que o pensamento é inseparável da experiência afetiva, ou seja, nunca encontraremos nesse pensador a razão subordinando à emoção.
Sendo a vida, portanto, puro afeto, ele nos apresenta a oportunidade de experimentarmos um amor à vida.
Segundo Spinoza, tudo que fazemos está regido e acompanhado pelas paixões. A razão não escapa à influência das emoções, pois estas são seu motor, ou seja, as paixões alavancam a razão no sentido de sua superação, tornando o homem mais potente em sua afirmação da vida.
A afirmação, ou seja, a crença de que não há nada na vida que possa ser negado, como o corpo ou o desejo torna o homem um ser criador, capaz de se expressar pois não valoriza a falta e não tenta reprimir-se ou diminuir-se.
Na contramão de muitas paisagens teóricas até hoje bastante valorizadas, que acreditam que se deixarmos a vida à mercê das emoções esta será uma desordem, uma barbárie, Spinoza postula que o que nos cabe é compreender nossa natureza, construindo assim um bom caminho, o caminho do florescimento do ser humano na alegria.
A ética de Spinoza é a ética da alegria. Para ele, só experimentamos os afetos de tristeza porque não compreendemos a causa do que nos entristece. Ao compreendermos profundamente o que nos entristece podemos transformar os afetos de tristeza em afetos de alegria. Tudo é afeto para Spinoza e ele nos apresenta a possibilidade de converter o nosso pensamento no mais potente dos afetos, naquele capaz de transmutar outros afetos.
Diferentemente da tradição filosófica, que afirma que podemos compreender alguma coisa quando tiramos a emoção “do jogo”, renunciando a dimensão afetiva da experiência, sendo racionais e objetivos, Spinoza entende o pensamento como afeto e que só podemos conhecer alguma coisa a partir desses afetos.
Exemplificando: você sente inveja de um colega que ganhou uma promoção no trabalho e tenta compreender racionalmente por quê está sentindo inveja, essa compreensão racional normalmente não faz com que você sinta menos inveja. Nesse momento existe a tendência de se criarem narrativas, ditas racionais, para explicar o afeto. “Eu sou muito mais competente, mas meu colega sempre bajulou meu chefe”, “essa empresa só valoriza quem vem de fora”, etc. Essa racionalização não ajuda na transformação da tristeza em bem-estar.
A proposta spinozana vem justamente possibilitar que um afeto de tristeza possa ser ultrapassado por um afeto mais forte, como o de alegria, por exemplo. As coisas em si, não teriam nada de bom ou ruim, é nosso ânimo que é afetado por elas e o entendimento afetivo dessas afecções possibilita que tenhamos no conhecimento um caminho para a liberdade.
Prática do Coaching
Qual é o caminho traçado por Spinoza que pode nos ajudar a pensar nossa prática de coaching, utilizando a noção do pensamento/conhecimento, razão como afeto?
Tido como “o filósofo dos encontros”, a proposta é fazer de nossa vida o palco de bons encontros. É exatamente no encontro que se dá o processo de coaching, quando um profissional tem a possibilidade de colaborar com seu cliente na compreensão de suas emoções, articulando-as com a razão em sua expressão e na construção de novas possibilidades de ação.
- O que faz, por exemplo, com que uma pessoa busque uma transição de carreira? Quais são os afetos que movem a busca desse indivíduo único?
- O que realmente importa e precisa ser conservado a partir do qual todo o entorno pode ser mudado?
- Que histórias esse indivíduo viveu que fazem com que busque determinado caminho?
- Quais as ações possíveis dada a emocionalidade prevalente?
O homem das paixões tristes é o homem do medo e da falta, aquele que cultua a tristeza e que sempre está projetando em algo distante uma saída para suas dores. Não se vendo como responsável por sua existência, é facilmente tiranizado por aqueles que prometem curas milagrosas, fortunas fáceis, fama, visibilidade e reconhecimento absolutos. Temos a oportunidade, nos processos de coaching, de questionarmos essas “ilusões da consciência”, termo utilizado por Spinoza, abrindo caminho para a construção de nós mesmos.A expressão “como alguém se torna o que é”, do poeta Píndaro, presente como subtítulo da obra Ecce Homo de Nietzsche, diz dessa atividade de criar a si mesmo, sendo mestre e escultor da própria vida. Nesse lugar nasce a possibilidade do aprendizado de novas formas de pensar, de agir, de viver e de conviver, e essa é a proposta que o coaching ontológico nos apresenta.
Tendo seu início no desejo daquele que se dispõe a percorrer o caminho de aprendizagem de “tornar-se o que se é”, o pensamento como afeto poderá impulsionar o homem na realização desse objetivo, desprezando inclusive todas as considerações teóricas contrárias a ele. Haja vista as grandes personalidades que mudaram o curso da história, contradizendo ideias consolidadas e mudando paradigmas.
Nossas emoções variam constantemente e é importante a aquisição de uma sensibilidade não apenas para perceber nosso estado emocional como também para a percepção de suas variações. Essa sensibilidade pode colaborar para utilizarmos a razão à serviço de nosso desenvolvimento harmonioso, pois o intelecto nos apresenta saídas favoráveis nos colocando numa disposição existencial que tem a ver com a experiência da criação, ou seja, numa postura criativa e criadora como modo de estar no mundo.
É na criação que podemos nos eternizar. A eternidade não como a imortalidade da alma, mas como uma intensidade que se passa no aqui e agora, que depende de nossa capacidade de pensar e perceber nossos afetos. No encontro com outros, passamos a ser capazes de nos apropriar dessa eternidade em vida.
Referências Bibliográficas
Chauí, M. (2011). Convite à Filosofia. São Paulo, Ática.
Echeverría, R. (2008). El Observador Y Su Mundo – Volumen I. Santiago – Chile, J. C. Sáez Editor.
Martins, A. (2009). O Mais Potente dos Afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo, WMF Martins Fontes.
Martins, A., et al. (2011). As Ilusões do Eu: Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.Karitas Ribas é mestre em Biologia-Cultural, filósofa, psicanalista, palestrante e coach com Formação Ontológica.