Quando o dress code invade a esfera pessoal e reitera velhos padrões de pensamento.
Se não aconteceu com você, provavelmente alguém por perto já mencionou ter feito mudanças na aparência para o exercício de uma atividade profissional. Muitas vezes, antes mesmo que a empresa oriente algum tipo de “adequação”, nos antecipamos para atender à expectativa que se imagina terem os recrutadores ou chefes. Os conselhos recorrentes a quem vai disputar uma vaga versam sobre coisas muito parecidas, fundamentalmente apoiadas em “ter uma boa aparência”.
Aqui mesmo já falamos sobre a roupa de entrevista e sigo repetindo o quanto entender a imagem pessoal como ferramenta de comunicação e saber utilizá-la de forma inteligente em cada contexto é importante. Não há dúvida de que o seu discurso pessoal está impregnado naquilo que você veste, da mesma forma que também se espera encontrar o discurso da empresa na maneira como se apresentam os seus funcionários.
E é justamente nessa superposição de discursos que se encontram alguns nós de comunicação sobre os quais eu gostaria que pensássemos. É legítimo que o empregador estabeleça normas que permitam estruturar e organizar a empresa da maneira que lhe pareça mais coerente com seus propósitos e visão. Nesse pacote incluem-se, claro – e em especial quando se reconhece a potência do discurso visual – aspectos ligados à imagem dos funcionários. Ao mesmo tempo, é igualmente legítimo que o funcionário queira preservar a sua individualidade, que se expressa também visualmente e diz respeito à maneira como ele, para além dos papéis que exerce (que exercemos todos, cotidianamente), organiza a própria vida da maneira que lhe parece mais coerente com seus propósitos e visão. Deu para perceber onde começa o enrosco?
O indivíduo é mais que seu papel profissional
Este não é um assunto fácil e sobre o qual se tenha diretrizes claras, inclusive na esfera do direito. Muitas ações vem tramitando na Justiça nos últimos anos em função do que se tem nomeado discriminação estética – e tanto as alegações como os resultados são bastante diversos. A grande questão é que se trata de um debate travado no delicado terreno das ideias, alicerçadas em concepções de mundo e construções culturais, sempre subjetivas.
Para ilustrar essa conversa, vejamos algumas situações. Em 2010, uma ação movida por funcionários do Bradesco, que impediu o uso de barba pelos homens, teve como resultado a condenação do banco e a proibição entendida como “conduta patronal que viola inequivocamente o direito fundamental à liberdade de dispor e construir a sua própria imagem em sua vida privada”. Um ano depois, porém, alguns juízes derrubaram a decisão anterior por entender que “uma eventual norma que proibisse o uso de barba não seria abusiva, pois não estaria fora do poder diretivo do empregador”.
Até que ponto o conjunto de prerrogativas do empregador pode interferir na esfera das escolhas individuais? Em que medida a organização interna e a comunicação visual de uma empresa permitem dispor dos corpos dos seus funcionários sem ferir os limites constitucionais que garantem a preservação da dignidade do trabalhador e a proteção contra práticas discriminatórias? Afinal, e para saltar a um aspecto ainda mais relevante do debate, como são construídas as percepções que temos, coletivamente, dos atributos físicos e construções visuais enquanto representação de atributos morais?
O perigo dos estigmas sociais
As explicações dadas pelos empregadores ou presentes nas sentenças nos permitem perceber como o problema é anterior ao próprio código de vestimenta. O Metrô do Distrito Federal, que elaborou um regulamento bastante restritivo – incluindo proibições como pintar o cabelo de cor diferente do natural ou usar brincos e relógios maiores que um determinado padrão estabelecido -, justificou-se dizendo que “não é apropriado alguém com cabelo rosa ou corte moicano prestando serviço em uma empresa que pretende passar segurança a seus passageiros. A ideia é manter um padrão normal.” Na mesma linha, a decisão dos ministros do TST, que julgaram não abusiva a proibição do uso de piercing pelos funcionários de um supermercado do grupo Carrefour, se apoia na ideia de que “se uma parte da população vê tal uso com absoluta normalidade, é de conhecimento público que outra parte não o aceita” e, portanto, o supermercado tem o poder de fixar normas para “não agredir nenhuma parcela de seu público consumidor”.
A Turkish Airlines proibiu, em 2013, o uso de esmalte ou batom de cores vivas por suas funcionárias, mas voltou atrás após várias vozes se levantarem questionando o caráter sexista e a influência religiosa do Estado Islâmico na determinação. Nos Estados Unidos, uma funcionária foi advertida por usar um lenço étnico sobre os cabelos (ainda que discreto e combinando perfeitamente com o terninho que trajava). Um agente de trânsito em Sorocaba foi demitido por se recusar a cortar o cabelo e o porteiro da biblioteca de uma universidade em Minas Gerais por não tirar o cavanhaque (mas ambos ganharam as ações movidas contra as respectivas empresas). Algumas organizações não permitem que os funcionários homens usem brincos, enquanto às mulheres é vetado o batom vermelho ou cabelos soltos. A bermuda masculina ainda é um tabu mesmo no mais infernal verão, e nos tribunais ainda subsiste desconforto por mulheres vestirem calças.
Novos consumos, antigos conceitos
Poderíamos seguir com outras tantas histórias em que elementos visuais são razão de advertências – ou de sua versão mais cínica, as chacotas. Mas o que interessa é perceber que, no fundo, o dress code das empresas é apenas reflexo – e perpetuação – de um padrão estético socialmente estabelecido. E que esse padrão passa a ser um problema se ignorarmos que ele é uma construção cultural-midiática e não uma verdade universal e imutável. O que essas normas que visam adequação, boa aparência ou uma suposta normalidade falam sobre nossos juízos morais mais arraigados? Em um mundo ainda tão refratário à diferença, como cuidar para que ideias perigosamente naturalizadas não ecoem preconceitos de gênero, raça, crença, origem, orientação sexual e outros mais?
As empresas se dizem preocupadas com o bem estar e a felicidade de seus colaboradores, mas não estão atentas às mudanças de comportamento pelas quais passam as comunidades em que elas se inserem. Mais que isso: da mesma maneira que se estimulam novos olhares e comportamentos para engendrar outras formas de consumo, por que não fazê-lo também no âmbito de nossas relações?