Distintos senhores leitores, essa conversa é também com vocês
A despeito das infindáveis diferenças que há entre nós, uma coisa é certa: todos, homens e mulheres (e todas as variações de gênero que têm se incorporado a este binômio), amanhã nos levantaremos e vestiremos alguma coisa antes de sair à rua, seja para ir à padaria, ao trabalho ou a uma festa.
Eleger e carregar uma roupa sobre si é inescapável e, embora eu arrisque dizer que uma grande porcentagem da população o faz de maneira automática, vez ou outra o indivíduo se verá diante do espelho fazendo escolhas — ou, diante de outras pessoas, descobrindo-se sujeito a toda sorte de leituras pelas escolhas feitas ou não.
A questão é que não estamos acostumados a pensar sobre roupas como ferramenta de comunicação e ficamos reféns de uma leitura superficial, estimulada pela mídia e pelo senso comum, que pretensamente nos ensinam a originalidade ou a adequação. A situação se agrava quando nos damos conta de que tal conteúdo é oferecido maciçamente ao público feminino, reforçando a ideia de que esse tema não interessa — e não interfere — na vida dos homens. Mas voltemos à primeira frase deste texto: amanhã, todos, homens e mulheres, nos vestiremos antes de sair de casa. E, sim, depois estaremos todos igualmente sujeitos às leituras de nosso discurso visual. Por que, então, deveriam estar os homens à margem dessa conversa?
A construção social da masculinidade
Historicamente, o vestuário masculino passou por inúmeras mudanças, mas sempre manteve a intenção de traduzir os atributos ligados à ideia de masculinidade — entenda-se, aqui, o homem cisgênero, heterossexual, num contexto patriarcal e economicamente favorável. Durante anos a vestimenta masculina mereceu mais atenção e elaboração do que a feminina, reforçando justamente seu grau de importância — Luís XIV, o Rei Sol, talvez seja a melhor ilustração para a suntuosidade do traje masculino e a vaidade permitida (e estimulada!) aos homens então. Esse percurso de diferenciação entre gêneros se explicita já no final do século XII com as inovações nas armaduras medievais, que tanto emulavam o corpo potente do guerreiro quanto exigiam a produção específica de trajes de baixo por um armeiro que trabalhava com linho, deixando claro que as técnicas de produção também são uma forma de conferir importância ao traje. Até o século XVIII, o vestuário masculino estava pautado pela opulência que tornava visíveis as relações de poder. Enquanto isso, o vestuário feminino pouco se alterou em relação às conservadoras formas clássicas tradicionais.
Um novo contexto, porém — guerras, ascensão burguesa e expansão do protestantismo — engendra outra forma de vestir para os homens. Assim como a arte e a arquitetura, o vestuário de fins do século XVIII vai buscar na Antiguidade clássica um visual de linhas mais simples que ecoa as ideias de aproximação da natureza, racionalidade e até mesmo liberdade e igualdade em voga nas principais capitais europeias, em oposição à artificialidade empoada e maneirista da nobreza decadente. A silhueta neoclássica evoca o heroísmo inato em cada homem e volta-se para as representações gregas em que a nudez do corpo masculino, perfeito, traduz também suas qualidades morais e mentais. Os alfaiates da época buscaram soluções para a construção de um traje que se aproximasse anatomicamente desse corpo e exaltasse, como ele, a nobreza, a força e a honestidade desse novo homem — está dado assim o primeiro passo para a consagração do traje moderno: sua excelência, o terno.
O herói desmascarado
Pois bem, chegamos assim ao ponto de convergência entre esta breve digressão histórica e a inquietação que me move a escrever para o público masculino. Dois séculos depois de uma invenção que antecipou a modernidade pela sagacidade com que estruturou tecido e desejo e consolidou a imagem de masculinidade lapidada ao longo do tempo, o terno torna-se então e, por isso mesmo, quase prisão. Tão bem materializou os anseios do papel social do homem que hoje é um dos elementos do discurso visual de significado mais fechado e, portanto, reiterador não apenas de um modo de vestir, mas principalmente de pensar.
A sociedade industrial do século XIX e início do século XX consagrou as roupas de trabalho, que explicitavam as relações hierárquicas e a organização social de classes com códigos facilmente reconhecíveis. Mas mudanças em todos os âmbitos da sociedade, inclusive na própria produção têxtil, com a popularização do prêt-à-porter, pavimentaram caminhos para outras e diferentes formas de se entender e usar a moda.
Nos últimos 60 anos, a determinação do gosto pela classe dominante deixou de ser exclusiva e vimos a ampliação dos discursos possíveis, com a apropriação de códigos específicos de determinados grupos, legitimados pelo cinema, pela música e por outros movimentos culturais e incorporados pela indústria da moda. A roupa de lazer — e própria valorização do tempo de lazer — abriu espaço para maior expressão da individualidade. A pós-modernidade autorizou voos de imaginação do vestuário que transcendem a visão austera de gêneros e papeis sociais.
Tudo isso pode ser uma incrível possibilidade de reinvenção para o homem contemporâneo. Mas esse não é um movimento fácil e, devo frisar, tampouco deve ser exclusivamente masculino. A fantasia heroica da qual é tão difícil despir-se foi legitimada por homens e mulheres durante muito tempo — e traz consigo também uma construção do que seja o feminino que merece igualmente ser analisada. Naturalizamos ideias e pré-conceitos dos quais sequer nos damos conta, mas é preciso desautomatizar. Temos que nos arriscar juntos a novas sintaxes.
Somos sujeitos do tempo presente; podemos fluir com ele ou esperar que nos arraste. Propor que revisemos nossa própria imagem é uma provocação que faço com imenso prazer: ela é o disparador para que olhemos atentamente para nós mesmos e, em seguida, à nossa volta. E sei que, se estivermos disponíveis, vamos encontrar diferentes interlocuções e muitas novidades, dentro e fora. Como Drummond, não quero — e tampouco acredito que alguém queira — ser o poeta de um mundo caduco. Então sigamos e “não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
Daniele Baumgartner é consultora de imagem, educadora e especialista em História da Arte.